sábado, 14 de julho de 2012

Sinal dos tempos

Integração regional sofre queda livre e em bloco

Desafios econômicos e falta de consenso político colocam em risco a integração regional

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Chefes de Estado participam da cerimônia de criação da Otan, em Washington, em 1949
Foto: AFP
Chefes de Estado participam da cerimônia de criação da Otan, em Washington, em 1949AFP
RIO — Algo desandou na sopa de letrinhas dos blocos econômicos. A União Europeia vive uma crise econômico-existencial. O Mercosul suspendeu um membro e vai incorporar outro em meio a protestos de alguns dos próprios sócios-fundadores. A Otan não chega a um consenso sobre uma ação militar na Síria, apesar de a ONU classificar a situação no país como uma guerra civil. A Alba... quem é a Alba mesmo? De ingredientes que vão de desafios econômicos à falta de consenso político, o declínio desses organismos tem colocado à prova a integração regional como um caminho eficaz para a atuação internacional.
Países emergentes, mundo global e atores subnacionais (locais, como estados e municípios) são alguns termos que têm ajudado a definir a atual realidade. A maior parte dos blocos existentes hoje, entretanto, foi criada em outro contexto, o que ajuda a explicar o enfraquecimento desses agrupamentos. Pio Penna Filho, professor de História das Relações Internacionais na UnB e autor do livro “Integração regional: os blocos econômicos nas Relações Internacionais”, lembra que esses agrupamentos são originários de organizações criadas nos anos 1950 e renovadas (entenda-se renomeadas) nos anos 1990 para conter os avanços da economia liberal sobre determinada região.
— Os blocos perderam muito da sua razão de ser. Isso está ligado ao processo de globalização e de liberalização econômica. Antes, eles eram uma alternativa para conter a política agressiva dos anos 90. O surgimento dos emergentes, que se descolam dos agrupamentos regionais, mudou isso. Passamos a falar em associações de países que não estão confinados a uma região, mas regidos por interesses de governança global — aponta.
Outro fator que contribui para essa mudança é a politização da agenda internacional após os atentados terroristas do 11 de Setembro e a guerra ao terror liderada por Washington. O historiador ressalta que, a partir dos anos 2000, os EUA, com sua política externa mais agressiva, deixaram de lado o plano de criação da Alca, que levaria ao livre comércio entre as Américas, e diminuíram as relações comerciais com a União Europeia.
— O diálogo internacional ficou em segundo plano, e o tema da segurança ganhou primazia sobre outros. Isso mudou a agenda internacional e, consequentemente, acabou enfraquecendo alguns blocos — explica Penna Filho.
Blocos sofrem com problemas internos
Pesquisadora na área de política externa e integração regional do programa de pós-graduação de Relações Internacionais da Uerj, Miriam Saraiva destaca que a ação americana dividiu opiniões e acabou por fragmentar os blocos.
— Não temos hoje blocos coesos porque os valores estão em transformação. Na União Europeia, parte das ações norte-americanas contra o terror foi apoiada, e parte, não. Essa fragmentação joga contra a estrutura dos blocos, mostra aos países que há diferentes posições a serem tomadas na política externa, muitas vezes conflitantes.
Além dos fatores internacionais, a maioria dos blocos também sofre com problemas internos. No caso mais recente, o Mercosul vem enfrentando divergências entre os sócios sobre a adesão da Venezuela como membro pleno, prevista para ser formalizada no próximo dia 31, em reunião no Rio. A principal voz dissonante é a do Paraguai. Suspenso da organização até as eleições presidenciais de 2013, por causa do impeachment relâmpago que tirou Fernando Lugo do poder, o país conta com o apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA) para voltar ao organismo.
— Nos acordos do Mercosul, há uma regra clara: para que um país seja admitido como membro pleno, deve ser aprovado por todos os países. O Paraguai ratificou esse acordo e, ao menos agora, não é a favor dessa inclusão. A ação é de um oportunismo sem tamanho, e a sensação é que se formou uma nova tríplice aliança entre Brasil, Argentina e Venezuela. Suspender um país alegando falta de democracia e colocar outro em que sabidamente há um grande déficit democrático, sobretudo em relação à liberdade de imprensa, é no mínimo paradoxal — afirma Penna Filho.
Especialistas alertam que a adesão venezuelana pode minar, no longo prazo, a integração regional, já ameaçada pelas disparidades econômicas e sociais entre os países-membros. Miriam Saraiva ressalta que o fato de a Venezuela não ter aderido completamente à tarifa externa comum (TEC) e resistir à abertura de seus mercados tornará difícil manter o status de união aduaneira:
— Se a entrada da Venezuela for confirmada, vai ser terrível para o Mercosul. Ou o bloco acaba ou modifica o perfil, voltando a ser apenas uma área de livre comércio. Chávez já afirmou que vai entrar para mudar. A Argentina, por sua vez, já vem tentando abrir brechas na TEC, numa difícil negociação em curso. Com a entrada da Venezuela, há um processo disruptivo. Significa trazer para dentro do Mercosul a discórdia e incentivar o desrespeito generalizado.
União Europeia sobrevive apesar da crise econômica
Em meio a esse intrincado processo, já surge um possível rival para o Mercosul. Chile, Colômbia, México e Peru anunciaram, em 6 de junho, a criação do Acordo do Pacífico, um organismo que tem por objetivo dar plena liberdade de circulação de mercadorias, capitais e pessoas, além da integração de redes de ensino e instituições financeiras. O ambicioso cronograma de liberação comercial e integração contrasta com os lentos avanços do Mercosul, que um dia já teve como objetivo se tornar um mercado comum.
Até hoje, o único bloco que conseguiu chegar a tal estágio de integração foi a União Europeia. A organização, entretanto, está sob intensa pressão desde a crise mundial de 2008, cenário agravado ainda mais pela crise da própria Europa, a partir de 2010. A instabilidade econômica deixou evidente a limitada influência política da UE. Para especialistas, entretanto, o organismo não está sob risco de implosão, já que o avançado processo de interdependência entre os Estados funciona como uma rede de proteção das instituições regionais.
— O interesse de países motores do processo em preservar a integração, e atualmente socorrer nações em crise na zona do euro, mostra a centralidade do processo de integração para sua inserção internacional. Ainda que haja a necessidade de adaptações do bloco, a atual crise iniciada na zona do euro não compromete a existência da União Europeia — analisa Diego Santos, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.
A profundidade das relações entre os membros é, de fato, o que difere a crise vivida hoje pela UE da enfrentada pelo Mercosul, aponta Kai Enno Lehmann, professor de Políticas da União Europeia no Instituto de Relações Internacionais da USP:
— Embora a União Europeia viva uma crise profunda, no dia a dia as instituições estão funcionando, mais ou menos, normalmente. Mesmos os países em crise não estão falando em sair do bloco. O Mercosul, por outro lado, nunca chegou a esse ponto avançado. Então, a tensão com Paraguai e Venezuela tem um impacto profundo, já que os processos políticos são mais frágeis. O Mercosul está passando por uma crise institucional, o que não é o caso da UE.
Diante da dificuldade de os grandes blocos chegarem a consensos políticos, atores locais acabam despontando. Na Rio+20, por exemplo, prefeitos das 59 megacidades integrantes do grupo C40 conseguiram chegar a metas de preservação do meio ambiente mais efetivas do que as estabelecidas no documento final da da conferência da ONU, produzido por cerca de cem líderes.
Embora a relevância desses atores seja crescente no diálogo internacional, Miriam Saraiva ressalta que a abrangência dessas ações ainda é muito pequena quando comparada à de organismos regionais.
— Os países são considerados personalidades jurídicas. Se o Estado assina um acordo, há consequências caso não cumpra. É um compromisso da nação. No caso dos atores subnacionais, os acordos são mais fluidos. O poderes locais conseguem tomar posições que nos ajudam a dar um passo. Mas, para dar 30, é praticamente impossível.


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